quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Tradição e contemporaneidade nas Histórias de Índio.

FAPEN ON-LINE. Ano 2, Volume 9, Série 15/09, 2021.


Profa. Ms. Gabriela Raizaro Tosi

Mestre em Literatura e Crítica Literária - PUC/SP
Especialista em Psicopedagogia e Psicomotricidade - FACON
Especialista em Gestão EAD - UFSCAR

Graduada em Pedagogia - UNIMES
Licenciada em Letras - CEUFSA


RESUMO: O presente estudo busca analisar a tradição e a contemporaneidade na obra Histórias de Índio, do autor indígena Daniel Munduruku, buscando elementos que mostrem a relação simbiótica entre a tradição da cultura indígena milenar com a sociedade branca contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Análise Textual, Histórias de Índio, Cultura Indígena.

 

ABSTRACT: This study seeks to analyze the tradition and contemporaneity in the work Histórias de Índio, by the indigenous author Daniel Munduruku, seeking elements that show the symbiotic relationship between the tradition of millenary indigenous culture and contemporary white society.

KEYWORDS: Textual Analysis, Indigenous Stories, Indigenous Culture.



1. INTRODUÇÃO.

Os povos originários possuem culturas voltadas para a transmissão oral de conhecimentos e elementos da sua cultura (lendas, histórias e etc.).

Temos no Brasil, mais de 300 línguas, sendo a maior parte delas indígenas e temos muitos povos que ainda não possuem escritores, ou seja, muitas culturas indígenas ainda não possuem registros escritos sobre suas histórias, cultura e religião.

Contudo, os autores indígenas vêm se organizado para publicar suas obras e se aproximares dos centros culturais por meio da busca pelo reconhecimento da sua produção cultural e acadêmica.

Podemos citar Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Kaká Werá Jecupé, Márcia Wayna Kambeba dentre outros que possuem produção relevante para conhecimento e aprofundamento das temáticas indígenas atuais e ancestrais.

Diante disso, se tornam cada vez mais relevantes as pesquisas que voltam para o entendimento da realidade indígena brasileira e que aproximam a sociedade e os povos originários.

Assim sendo, é interessante notar que alguns povos indígenas, possuem representantes na sociedade que se destacam pelo vigor da produção acadêmica, pelo ativismo social, pela defesa do meio ambiente ou pela capacidade de alcance que a sua fala possui em meio às pessoas comuns.

 

2. DANIEL MUNDURUKU.

Daniel Munduruku, é escritor indígena sobre o qual o presente trabalho se debruçará a partir da perspectiva literária, analisando sua obra Histórias de Índio.

O autor se dedica à literatura infantil e juvenil produzindo obras contextualizadas em aldeias munduruku com personagens que percorrem diversos temas ao longo do enredo e trazem o leitor para o seu universo, aproximando-o da sua cultura de forma suave e orgânica.

Pertencente à etnia Munduruku, pertencente ao tronco Tupi Guarani, cuja maior parte se estabelece no Estado Brasileiro localizado no norte do país, é na região do Pará que nasceu em 28 de fevereiro de 1954 Daniel Mundurku na cidade de Belém, onde viveu toda a infância.

Apaixonado pelo conhecimento, construiu uma vida acadêmica marcada por três graduações, filosofia, história e psicologia no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), mestrado e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Dedicou e dedica sua vida à escrita de livros, sendo autor de diversos livros, ganhador de diversos prêmios Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República (2013)

Menção honrosa do Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Menção de Livro Altamente Recomendável pela Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil, Prêmio Jabuti de Literatura, Prêmio da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Érico Vanucci Mendes, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico é membro da Academia de Letras de Lorena. É diretor-presidente do Instituto Uk'a - Casa dos Saberes Ancestrais.

O autor se dedicou ao estudo da educação, da literatura e da linguagem produzindo estudos publicados sobre esses temas, que sempre voltados para o universo indígena, contribuem para difusão do conhecimento e aproximação com a cultura da etnia Munduruku.

Diante disso, torna-se importante entender alguns conceitos culturais importantes desse povo antes de abordar o conteúdo da sua obra literária, que também estão presentes nas suas obras e cujo conhecimento permite ao estudioso alcançar as referências que o autor traz em seus enredos.

Essa etnia indígena, assim como muitas outras, é nômade. O nomadismo traz uma percepção única sobre os elementos e conquistas materiais bem como sobre o trabalho, pois um povo nômade não tem vê necessidade em trabalhar para acumular riquezas, tendo em vista que trabalha para garantir a sobrevivência do grupo.

Nesse sentido, o senso coletivo é muito forte e os esforços de um indivíduo do grupo sempre visam resultados que se estendam a todos; salientamos aqui que o meio ambiente está inserido no grupo de forma autêntica e relevante.

 

3. CULTURA ÍNDIGENA E VOCABULÁRIO.

Os indígenas compreendem a relevância do ecossistema para a sua existência e para o equilíbrio da vida e tornam essa percepção realidade através de ações voltadas para a caça consciente, o respeito com todos os elementos naturais e a luta pela sua preservação.

Consequentemente, todos os povos indígenas possuem um ativismo ambiental muito presente em suas ações e trajetórias de atuação no mundo.

São os maiores representantes da natureza se colocando em frentes de resistência contra o desmatamento e o consumo descontrolado da sociedade de consumo, sempre se equilibrando entre as necessidades de consumo e as jornadas exaustivas de trabalho.

Também podemos citar como característica cultural do povo Munduruku a percepção do tempo, tendo em vista que se dedicam ao momento presente e usam o passado como fonte de aprendizado e conhecimento e o futuro como uma possibilidade na linha da vida de todos os seres vivos.

Sempre que dialoga com pesquisadores em lives e entrevistas, Daniel Munduruku deixa clara essa questão ao comparar as fases da vida como um círculo no qual cada estação precisa ser vivida plenamente para que a vida siga seu rumo de maneira saudável e plena .

Esses aspectos culturais, relatados aqui brevemente, se revelam nas histórias que dão vida aos personagens do autor e se mostram extremamente importantes para o entendimento aprofundado dos elementos narrativos apresentados ao longo das obras.

Além disso, a religião também se mostra extremamente importante e presente nas obras de Daniel Munduruku aparecendo por meio de histórias dos antepassados que são contadas para ensinar, para demonstrar ou mesmo para reunir a aldeia em porandubas (conversas, no idioma Munduruku).

Quanto ao vocabulário, sua obra conta com a estrutura da língua portuguesa para se mostrar ao leitor com toques da língua munduruku presentes na escolha do uso de palavras desse idioma para representar algumas ideias ao longo das narrativas.

 

4. HISTÓRIAS DE ÍNDIO.

É com a publicação de Histórias de índio, Companhia das Letrinhas, 1997, que Daniel Munduruku estreia como autor de literatura indígena.

Essa obra se trata de um jovem que será iniciado nas práticas de pajelança e em seu contato mais íntimo com a religião do seu povo, aprende segredos e ensinamentos que o conectam com a sua camada mais profunda do EU: os sonhos.

Seu mestre lhe ensina que não é possível se tornar um pajé sem a prática do sonho, pois ele revela muitas coisas e conecta o humano com o mundo espiritual.

Diante disso, o aprendiz se dedica em começar o aprendizado que o mestre lhe solicita e, portanto, cumprindo os ritos de passagem para a vida adulta cheia de responsabilidades com a aldeia e com as suas novas tarefas.

O livro é divido em três partes, sendo a primeira sobre a vida do Kaxi, conforme relatado brevemente acima, e a segunda falando sobre a vida do próprio autor e a sua convivência com os elementos do universo ocidental.

E, por fim, a terceira parte na qual são apresentadas informações sobre a etnia Munduruku, trazendo conhecimentos gerais sobre esse povo e suas principais características.

Diante disso, o leitor atento fica se questionando se a obra se trata, ao menos em parte, de uma autoficção, na qual o autor se coloca como um personagem com traços biográficos e analíticos em relação aos fatos vividos em uma cadência que o faz reviver situações repaginadas pela narrativa, que o coloca em posição analítica sobre as próprias memórias e finaliza com dados provenientes de uma pesquisa forma sobre sua etnia.

A partir dessa perspectiva, na qual temos uma única obra intitulada Histórias de Índio, dividas em três partes sendo a primeira e vida na aldeia e a segunda a vida na sociedade do homem branco e a terceira mostrando a face do pesquisados de racionaliza e estuda seu próprio povo, suas origens, mas todas essas personas se estruturam a partir de apenas um indígena que permeia toda a história: o narrador.

Por esse motivo, associa-se o fato de o narrador estar presente nas duas histórias e o termo Índio, presente no título, estar na sua forma singular, pois mesmo quando a pesquisa se apresenta no final do livro, com dados relevantes sobre os Munduruku, é possível perceber um fio narrativo que conduz o leitor pelo conhecimento.

Outro aspecto interessante é a resistência presente na obra que, sensível ao viés literário e artístico do uso da palavra, usa a língua portuguesa com pequenos fragmentos, fraturas em sua estrutura, representadas pelos vocábulos munduruku que marcam presença na língua do opressor dos povos indígenas.

Há muito que o opressor dos povos indígenas deixou de ser os portugueses, que não cedeu seu lugar sem resistir, ao homem branco brasileiro. Diante disso, ainda temos um opressor que se expressa em língua portuguesa e que precisa ser conscientizado de que o indígena existe e vai continuar presente e difundindo sua cultura e seus saberes ancestrais.

Toda a estrutura da obra se mostra como o percurso do próprio autor, que inicia sua jornada na vida como um indígena nascido e criado na aldeia Munduruku para, na vida adulta, se relacionar com o homem branco e sua sociedade para depois se tornar um pesquisador com uma carreira acadêmica consolidada, que é utilizada como instrumento de combate e resistência no que diz respeito às causas indígenas e às necessidades do seu povo.

Assim sendo, tanto na ficção como na vida real, temos a tradição convivendo com o contemporâneo, pois a vinda do indígena para a sociedade branca em sua estrutura acadêmica transporta esses elementos para uma convivência intercultural e não estacionária, na medida em que se ressignifica a partir do contato.

 

De acordo com BAUMAN:

Resumidamente, a “individualização” consiste em transformar a “identidade humana de um dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das consequências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independente de a autonomia da facto também ter sido estabelecida). (BAUMAN, 2021, p.44)

 

Vários elementos contribuem para que a tradição e a contemporaneidade sejam vistos lado a lado na relação entre autor e autoria, tendo em vista que a sua afirmação enquanto autor indígena se dá no instrumento de difusão de conhecimento do homem branco: o livro, em língua portuguesa; produzido em três etapas que mostram todas as faces do autor na sua autoria.

Os “efeitos colaterais” da identidade individualizada do indígena acadêmico se dão na medida em que os saberes originalmente difundidos na linguagem oral munduruku se manifestam na escrita poética de Daniel, pelas aventuras do menino Kaxi, ou pelo relato da sua convivência com a cultura do homem branco, que muitas vezes questiona sua identidade pelo percurso acadêmico vivido de forma obrigatoriamente distanciada da sua aldeia.

Esse distanciamento é questionado e visto como uma perda gradativa de identidade de forma injusta, tendo em vista que o país não universaliza o conhecimento para a sua população indígena ao não fornecer instituições indígenas de estudo com a oferta de cursos superiores e/ou livros nas línguas indígenas para que seus autores sejam lidos pelos seus na sua língua materna.

 

5. CONCLUSÃO.

Indivíduos que precisam se afirmar, devem buscar sua individualidade com os instrumentos que possuem e utilizando as ferramentas que conseguem angariar.

Infelizmente, os indígenas brasileiros conseguem afirmar sua identidade a firmar sua individualidade com pouquíssimos instrumentos que os colocam em situações relevantes de diálogo com menos frequência que o necessário para a garantida do seu direito de existir.

Por conta disso, a autonomia que os grupos indígenas possuem para preservar sua identidade, nem sempre diz respeito aos esforços, mas sim às condições para que os esforços sejam feitos, pois muitos pagam com a própria vida pela autoafirmação enquanto indígenas brasileiros, povos originários que se organizam socialmente e ocupam os espaços acadêmicos desenvolvendo pesquisa.

O livro Histórias de Índio é uma narrativa que traz diversos elementos para todas as idades conhecerem um pouco mais sobre os povos indígenas e muito a respeito da etnia Munduruku.

Sua construção nos mostra que a tradição e o contemporâneo podem coexistir sem se ferir, embora o contato entre ambos tragam modificações impossíveis de serem barradas ou impedidas porque a falta delas significa a falta de movimento inerente à vida.

 

6. REFERÊNCIAS.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Modernidade Líquida / Zygmunt Bauman. tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

CAMPOS, Hélio Silva. Cosmovisões: antigas e contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2015.

MUNDURUKU, Daniel. Histórias de Índio. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2012.

BRASIL. PIB Socioambiental - Quadro Geral dos Povos Indígenas. UNIRIO - Aula inaugural da Escola de Letras recebe escritor Daniel Munduruku. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos> Acesso em: 10/07/2021 às 16h20

WERÁ, Kaká. O poder do sonho: um livro sobre a arte de sonhar. Estados Unidos da América: Tumiak Edições, 2021.



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