FAPEN
ON-LINE. Ano 1, Volume 3, Série
26/03, 2020.
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Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos
Doutor em Ciências Humanas - USP. MBA em Gestão de Pessoas - UNIA. Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP. Licenciado em Filosofia - FE/USP. Licenciado em História - CEUCLAR.
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RESUMO:
Em um momento
marcado por mudanças na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), torna-se
necessário discutir um elemento essencial para o sucesso da implantação de
mudanças nos parâmetros norteadores do sistema educacional brasileiro, ou seja,
a formação dos professores. Simultaneamente, esta formação interfere diretamente
em como os educadores se enxergam ao atuar em sala de aula. Assim, pretendemos
realizar uma breve reflexão sobre a importância do estágio na formação docente
e na construção da identidade do professor, circunscrito à educação infantil.
PALAVRAS-CHAVE:
Educação
Infantil, Estágio, Formação Docente, Identidade Docente.
ABSTRACT: At a
time marked by changes in the BNCC (National Common Curricular Base), it is
necessary to discuss an essential element for the successful implementation of
changes in the parameters of the Brazilian educational system, that is, teacher
training. At the same time, this training directly interferes with the way
educators come to see and perform in the classroom. Thus, we intend to make a
brief reflection on the importance of the internship in teacher education and
in the construction of the teacher's identity, at this moment, circumscribed in
early childhood education.
KEYWORDS: Child
Education, Internship, Teacher Training, Teacher Identity.
1.
INTRODUÇÃO.
Em qualquer área, o conhecimento
teórico e a prática são indissociáveis para propiciar o exercício e a identidade
profissional.
Neste sentido, a
educação infantil, que atende crianças de zero a seis anos, exige do professor
uma formação mais complexa do que o senso comum imagina.
A abordagem
pedagógica é, inclusive, distinta para bebês (zero até um ano e seis meses), crianças bem pequenas (um ano e sete meses até três
anos e onze meses) e crianças
pequenas (quatro anos até cinco anos e onze meses).
O estágio insere-se
como experiência formativa que completa e expande a aprendizagem teórica
necessária para lidar com esta complexidade.
Permite vivenciar
situações que desenvolvem competências e habilidades essenciais para condução
da formação docente sólida e articulada com identidade e práticas educativas.
Construindo
empiricamente saberes necessários para o exercício docente, entrelaçando teoria
e prática, em via dupla e contínua, onde um segmento completa e torna-se
dependente do outro.
2.
A FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO EM TORNO DA EDUCAÇÃO INFANTIL.
Quando o senso comum
pensa na educação infantil, imagina uma situação totalmente diversa da
realidade.
Soma-se uma
infinidade de atitudes preconceituosas e pejorativas, tributárias de um longo
processo de formação histórica das mentalidades.
O inicio da
construção do sistema educacional brasileiro remonta ao período colonial,
quando a profissão docente, em todos os níveis, era exclusivamente masculina.
Na Europa, a Companhia
de Jesus havia sido fundada por Inácio de Loyola, em 1534, com o objetivo de
evangelizar através da educação, sendo seus membros considerados soldados
intelectuais de Cristo.
Em 1540, a Companhia
foi instituída em Portugal, pouco depois os primeiros jesuítas chegaram ao
Brasil, fundando o primeiro colégio em 1551, declarando a intenção de recolher
os filhos dos nativos e colonos para ensinar e doutrinar no âmbito do
cristianismo.
Os jesuítas pensaram
no que hoje chamamos de educação infantil apenas circunscrito à alfabetização,
criando uma imagem mais relacionada ao cuidar, servindo ao propósito duplo da
doutrinação religiosa, do que ao educar voltado à passagem da heteronomia para
a autonomia.
Depois de atritos
políticos e em busca de recursos econômicos para reconstruir Portugal, arrasado
pelo grande terremoto de 1755, o Marquês de Pombal, primeiro ministro do rei D.
José, expulsou os jesuítas da colônia e da metrópole em 1759, confiscando todos
os bens da Companhia.
Os jesuítas eram os
únicos professores com formação especifica voltada ao atendimento da educação
no Brasil, havia outras ordens religiosas e preceptores leigos - todos homes -,
mas a Companhia de Jesus, através de seus colégios e missões, atendia a ampla
maioria da população.
Na Europa havia
centros de formação exclusivamente voltados a preparar os jesuítas para o
exercício do magistério, a contextualização teórica era, depois, complementada
com a prática vivenciada nas instituições educacionais da Companhia.
Uma situação análoga
ao que contemporaneamente chamamos de estágio era vivida pelos membros da ordem
ao iniciar suas obrigações como docentes pregadores, quando eram guiados por
membros mais velhos e experientes até que pudessem exercer sua função com
autonomia e orientar os novatos.
Ao serem expulsos dos
domínios lusitanos, os embrionários centros educacionais na colônia, os únicos
a oferecer acesso gratuito, ficaram desprovidos de professores.
A solução da Coroa
portuguesa foi ordenar que sargentos de milícia ocupassem as posições, uma vez
que os oficiais consideram a função indigna de sua posição social.
A razão da escolha
deste segmento como substituto dos jesuítas estava relacionada ao fato dos
militares com patente - excetuando, portanto, soldados raros -, serem os únicos
com conhecimento teórico minimamente suficiente para lecionar, embora não tivessem
a formação pedagógica dos membros da Companhia de Jesus.
No entanto, também existiu
outra razão, os jesuítas gozavam de respeito da população e inspiravam
confiança nos pais das crianças entregues aos seus cuidados, precisavam ser
substituídos por elementos a sua altura.
A Coroa pretendia que
os sargentos pudessem se encaixar no perfil imaginado pelo senso comum envolta
da infância: cuidadores que alfabetizam e disciplinam para formar bons
cristãos.
Lembrando que a
infância se estendia até os sete anos nesta época, terminando com ritos de
passagem como o casamento, e que a adolescência não existia, nasceu somente no
século XIX e se perpetuou no imaginário ao longo do século XX.
É óbvio que o
respeito pelas instituições militares lusitanas não foi transferido aos
sargentos transvestidos de professores, não tardou para que a educação se
transformasse em cópia dos procedimentos adotados em quartéis para formar
soldados.
A educação foi
militarizada, ao invés de jogos e brincadeiras, pedagogia jesuíta, adquirida da
cultura indígena, os sargentos passaram a utilizar a palmatória, abandonaram o
cuidar e a alfabetização pelo simples disciplinar.
A violência física
utilizada para submeter os escravos africanos foi transposta para educação, os
sargentos não inspiraram a necessária confiança nos pais e em seus filhos,
recorrendo à brutalidade para disciplinar.
Nasceu a imagem
fixada até nossos dias de ensino tradicional, aplicada à educação infantil, com
função disciplinadora, exercitada pela violência, que não goza da confiança da
sociedade.
3.
A TRANSFORMAÇÃO DA PROFISSÃO DOCENTE EM FEMININA.
Depois de um período
de transição, quando o acesso à educação foi ampliado no final do período
colonial, com a chegada ao Rio de Janeiro da família real portuguesa, a
independência do Brasil trouxe novas mudanças.
O modelo educacional
britânico foi oficialmente adotado, embora os professores da época não
estivessem adequadamente preparados para implementá-lo.
A profissão docente
foi se transformando em predominantemente feminina, o magistério passou a ser
visto como uma extensão da maternidade, inspirando a confiança dos pais,
originando a expressão tia para designar a professora.
Visando poupar
custos, em 1849, o nível intelectual do professor do ensino regular normal foi
rebaixado para a exigência da formação primária, antes, desde o inicio do
século XIX, era necessário possuir ensino superior.
A reboque, os
salários dos professores também sofreram redução significativa, algumas outras
funções, como de inspetor, deixaram até mesmo de ser remuneradas, tornando-se
voluntárias.
Estas condições
forjaram no imaginário popular uma concepção de professora cuidadora,
respeitada, mas não valorizada; com muitas docentes identificando a si mesmas
como “tias”.
A escola passou a ser
vista como dispensável em termos formativo, ao mesmo tempo, essencial como
depósito de crianças, um local para deixar os filhos sob supervisão enquanto se
trabalha e cuida da própria vida.
4.
A IMPORTÂNCIA SOCIAL DA EDUCAÇÃO INFANTIL.
A despeito da
autoimagem docente de cuidadora do gênero feminino e da visão equivocada de escola
como depósito de crianças desprovido de sentido pedagógico, na
contemporaneidade a educação infantil assumiu uma importância social elevada e
condizente com os objetivos propostos pela BNCC.
Ainda hoje está
presente, mesmo entre professores, embora mais comum naqueles que atuam no
ensino fundamental e médio; amplamente fortalecido no senso comum pela
trajetória histórica da formação da mentalidade; uma falsa imagem de processos
educacionais simplificados aplicados à infância.
A BNCC fixa como
objetivos da aprendizagem e desenvolvimento na educação infantil: conviver, brincar,
participar, explorar, expressar e conhecer-se; mas o imaginário resume a
complexidade pedagógica em torno destes objetivos como brincadeiras que ocupam
o tempo das crianças.
A relação entre
cuidar e educar é mais complexa, a educação infantil deve promover a
aprendizagem e o desenvolvimento, implicando na interação entre práticas
educativas para promover a integração das crianças com o mundo físico e social.
Onde a afetividade
também deve estar presente, mas não isenta o professor do exercício de seu
ofício guiando-se por uma prática eminentemente técnica, que carece de formação
adequada, na qual se insere o estágio e o domínio do conhecimento teórico.
Neste contexto, a
importância social da educação infantil se sobressai diante da tarefa do
educador de servir como mediador no desenvolvimento de competências e
habilidades.
O professor de
creches e pré-escolas precisa valer-se da ludicidade para organizar ambientes e
situações que possibilitem a exercitação da inteligência, construindo novos
conhecimentos e valores a partir do capital cultural do educando.
O que novamente
remete a formação docente, exigindo que o futuro professor coloque em prática a
teoria, realize experimentações e reconstrua sua própria visão de mundo,
valorizando a autoimagem de si e da profissão.
5.
A DIALÉTICA ENTRE TEORIA E PRÁTICA.
A experimentação propiciada
pelo estágio é uma oportunidade de intervenção real junto ao educando, onde a
reflexão é fomentada.
Portanto, reconduz a
discussão teórica, a qual, por sua vez, anteriormente já requeria do acadêmico
o contato direto com a prática; compondo um movimento circular contínuo entre
saber teórico e vivência da prática na educação infantil.
Ressalta Freitas e Montandon
(2013, p.04) que “na constituição profissional do educador, toda pesquisa
contribui para constantes melhorias e para a revisão da prática pedagógica,
assim como possibilita a abertura de novos caminhos e entendimentos sobre o
contexto de exercício da profissão”.
O estágio constitui uma
pesquisa de campo, onde se articula o saber teórico, que é reconfigurado em
novas informações e dados; ressignificando a teoria, que exige novamente
empiricidade, remetendo a prática e circularidade unívoca entre saber teórico e
exercitação lúdica.
O estágio é o fio
condutor para articulação da identidade do professor, contribuindo não só para
a formação docente, mas, também, para o inicio da adoção de uma postura
contínua de pesquisa e reflexão sobre a vivência da prática.
A observação do
educando possibilita a coleta de dados e a implementação de novas abordagens
pedagógicas, advindas de discussões teóricas inerentes à academia e/ou que
surgem da prática para teoria e da teoria para prática, construídas
coletivamente com auxilio de educandos e educadores e fruto do debate entre
pares nas universidades.
6.
CONCLUSÃO.
O estágio é essencial
na formação do educador e no autoconhecimento sobre sua identidade, sua
importância não se resume a complementação da teoria transformada em prática.
Na educação infantil, não serve apenas a observação
da criança de zero a seis anos ou ao entendimento do cuidar.
Mais do que
profissionalizar, o estágio expande a teoria para o processo contínuo de
pesquisa e reconstrução do conhecimento, agregando novos saberes que subsidiam
competências e habilidades e, igualmente, estimulando uma postura criativa de
práticas pedagógicas particularizadas.
A despeito de linhas
pedagógicas de orientação comuns, cada educador, por meio do estágio, constrói
sua própria forma de lidar com a infância, reconhecendo-se como professor que
intervém na realidade da criança, atendendo a demanda do educando, adaptando a
teoria a cada necessidade especifica.
Reescrevendo o
planejamento e expectativas acadêmicas de resposta da criança aos estímulos, efetivando
o processo educativo com a ampliação do conhecimento.
O estágio é também,
simultaneamente, um importante elemento de construção da identidade do professor
da educação infantil, introduzindo na essência da docência: um contínuo
entrelaçamento entre teoria e prática e uma constante e perpétua reflexão e
pesquisa, que rescreve saberes pedagógicos em um movimento dialético,
adequando-se às necessidades do educando e do educador.
4.
REFERÊNCIAS.
ALBUQUERQUE, S. S.;
FELIPE, J.; CORSO, L. V. Para pensar a
docência na educação infantil. Porto Alegre: Evangraf, 2019.
ANDRADE, Lucimary
Bernabé Pedrosa. Prática Docente na Educação Infantil. São Paulo: UnicSul, s.d.
BOURDIEU,
Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação
Fundamental.
FREITAS, Adriana;
MONTANDON, Ana Carolina de Lima Boaventura. As especificidades da docência
na Educação Infantil: o estágio
como possibilidade de refleão-ação. REDIVI
- Revista de Divulgação Interdisciplinar do Núcleo das Licenciaturas. 2013-1. Itajaí:
UNIVALI, 2013. Disponível em: <http://bit.ly/3bCQ5dD>. Acesso em: 03 abr.
2020.
RAMOS, Fábio Pestana. “A constituição afetiva da infância e da família no
período colonial: o nascimento da profissão docente no Brasil” In:
Profissão Docente e Cultura Escolar. São Paulo:
Intersubjetiva, 2004, p.13-40.
RAMOS, Fábio
Pestana; MORAIS, Marcos Vinicius de. Eles formaram o Brasil. São Paulo:
Contexto, 2010.