terça-feira, 24 de março de 2020

A importância do estágio na formação docente e a sua contribuição para a construção da identidade do professor da educação infantil.



FAPEN ON-LINE. Ano 1, Volume 3, Série 26/03, 2020.


Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos

Doutor em Ciências Humanas - USP.
MBA em Gestão de Pessoas - UNIA.
Bacharel em Filosofia - FFLCH/USP.
Licenciado em Filosofia - FE/USP.
Licenciado em História - CEUCLAR.


RESUMO: Em um momento marcado por mudanças na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), torna-se necessário discutir um elemento essencial para o sucesso da implantação de mudanças nos parâmetros norteadores do sistema educacional brasileiro, ou seja, a formação dos professores. Simultaneamente, esta formação interfere diretamente em como os educadores se enxergam ao atuar em sala de aula. Assim, pretendemos realizar uma breve reflexão sobre a importância do estágio na formação docente e na construção da identidade do professor, circunscrito à educação infantil.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Infantil, Estágio, Formação Docente, Identidade Docente.

ABSTRACT: At a time marked by changes in the BNCC (National Common Curricular Base), it is necessary to discuss an essential element for the successful implementation of changes in the parameters of the Brazilian educational system, that is, teacher training. At the same time, this training directly interferes with the way educators come to see and perform in the classroom. Thus, we intend to make a brief reflection on the importance of the internship in teacher education and in the construction of the teacher's identity, at this moment, circumscribed in early childhood education.
KEYWORDS: Child Education, Internship, Teacher Training, Teacher Identity.


1. INTRODUÇÃO.
Em qualquer área, o conhecimento teórico e a prática são indissociáveis para propiciar o exercício e a identidade profissional.
Neste sentido, a educação infantil, que atende crianças de zero a seis anos, exige do professor uma formação mais complexa do que o senso comum imagina.
A abordagem pedagógica é, inclusive, distinta para bebês (zero até um ano e seis meses), crianças bem pequenas (um ano e sete meses até três anos e onze meses) e crianças pequenas (quatro anos até cinco anos e onze meses).
O estágio insere-se como experiência formativa que completa e expande a aprendizagem teórica necessária para lidar com esta complexidade.
Permite vivenciar situações que desenvolvem competências e habilidades essenciais para condução da formação docente sólida e articulada com identidade e práticas educativas.
Construindo empiricamente saberes necessários para o exercício docente, entrelaçando teoria e prática, em via dupla e contínua, onde um segmento completa e torna-se dependente do outro.

2. A FORMAÇÃO DO IMAGINÁRIO EM TORNO DA EDUCAÇÃO INFANTIL.
Quando o senso comum pensa na educação infantil, imagina uma situação totalmente diversa da realidade.
Soma-se uma infinidade de atitudes preconceituosas e pejorativas, tributárias de um longo processo de formação histórica das mentalidades.
O inicio da construção do sistema educacional brasileiro remonta ao período colonial, quando a profissão docente, em todos os níveis, era exclusivamente masculina.
Na Europa, a Companhia de Jesus havia sido fundada por Inácio de Loyola, em 1534, com o objetivo de evangelizar através da educação, sendo seus membros considerados soldados intelectuais de Cristo.
Em 1540, a Companhia foi instituída em Portugal, pouco depois os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil, fundando o primeiro colégio em 1551, declarando a intenção de recolher os filhos dos nativos e colonos para ensinar e doutrinar no âmbito do cristianismo.
Os jesuítas pensaram no que hoje chamamos de educação infantil apenas circunscrito à alfabetização, criando uma imagem mais relacionada ao cuidar, servindo ao propósito duplo da doutrinação religiosa, do que ao educar voltado à passagem da heteronomia para a autonomia.
Depois de atritos políticos e em busca de recursos econômicos para reconstruir Portugal, arrasado pelo grande terremoto de 1755, o Marquês de Pombal, primeiro ministro do rei D. José, expulsou os jesuítas da colônia e da metrópole em 1759, confiscando todos os bens da Companhia.
Os jesuítas eram os únicos professores com formação especifica voltada ao atendimento da educação no Brasil, havia outras ordens religiosas e preceptores leigos - todos homes -, mas a Companhia de Jesus, através de seus colégios e missões, atendia a ampla maioria da população.
Na Europa havia centros de formação exclusivamente voltados a preparar os jesuítas para o exercício do magistério, a contextualização teórica era, depois, complementada com a prática vivenciada nas instituições educacionais da Companhia.
Uma situação análoga ao que contemporaneamente chamamos de estágio era vivida pelos membros da ordem ao iniciar suas obrigações como docentes pregadores, quando eram guiados por membros mais velhos e experientes até que pudessem exercer sua função com autonomia e orientar os novatos.
Ao serem expulsos dos domínios lusitanos, os embrionários centros educacionais na colônia, os únicos a oferecer acesso gratuito, ficaram desprovidos de professores.
A solução da Coroa portuguesa foi ordenar que sargentos de milícia ocupassem as posições, uma vez que os oficiais consideram a função indigna de sua posição social.
A razão da escolha deste segmento como substituto dos jesuítas estava relacionada ao fato dos militares com patente - excetuando, portanto, soldados raros -, serem os únicos com conhecimento teórico minimamente suficiente para lecionar, embora não tivessem a formação pedagógica dos membros da Companhia de Jesus.
No entanto, também existiu outra razão, os jesuítas gozavam de respeito da população e inspiravam confiança nos pais das crianças entregues aos seus cuidados, precisavam ser substituídos por elementos a sua altura.
A Coroa pretendia que os sargentos pudessem se encaixar no perfil imaginado pelo senso comum envolta da infância: cuidadores que alfabetizam e disciplinam para formar bons cristãos.
Lembrando que a infância se estendia até os sete anos nesta época, terminando com ritos de passagem como o casamento, e que a adolescência não existia, nasceu somente no século XIX e se perpetuou no imaginário ao longo do século XX.
É óbvio que o respeito pelas instituições militares lusitanas não foi transferido aos sargentos transvestidos de professores, não tardou para que a educação se transformasse em cópia dos procedimentos adotados em quartéis para formar soldados.
A educação foi militarizada, ao invés de jogos e brincadeiras, pedagogia jesuíta, adquirida da cultura indígena, os sargentos passaram a utilizar a palmatória, abandonaram o cuidar e a alfabetização pelo simples disciplinar.
A violência física utilizada para submeter os escravos africanos foi transposta para educação, os sargentos não inspiraram a necessária confiança nos pais e em seus filhos, recorrendo à brutalidade para disciplinar.
Nasceu a imagem fixada até nossos dias de ensino tradicional, aplicada à educação infantil, com função disciplinadora, exercitada pela violência, que não goza da confiança da sociedade.

3. A TRANSFORMAÇÃO DA PROFISSÃO DOCENTE EM FEMININA.
Depois de um período de transição, quando o acesso à educação foi ampliado no final do período colonial, com a chegada ao Rio de Janeiro da família real portuguesa, a independência do Brasil trouxe novas mudanças.
O modelo educacional britânico foi oficialmente adotado, embora os professores da época não estivessem adequadamente preparados para implementá-lo.
A profissão docente foi se transformando em predominantemente feminina, o magistério passou a ser visto como uma extensão da maternidade, inspirando a confiança dos pais, originando a expressão tia para designar a professora.
Visando poupar custos, em 1849, o nível intelectual do professor do ensino regular normal foi rebaixado para a exigência da formação primária, antes, desde o inicio do século XIX, era necessário possuir ensino superior.
A reboque, os salários dos professores também sofreram redução significativa, algumas outras funções, como de inspetor, deixaram até mesmo de ser remuneradas, tornando-se voluntárias.
Estas condições forjaram no imaginário popular uma concepção de professora cuidadora, respeitada, mas não valorizada; com muitas docentes identificando a si mesmas como “tias”.
A escola passou a ser vista como dispensável em termos formativo, ao mesmo tempo, essencial como depósito de crianças, um local para deixar os filhos sob supervisão enquanto se trabalha e cuida da própria vida.

4. A IMPORTÂNCIA SOCIAL DA EDUCAÇÃO INFANTIL.
A despeito da autoimagem docente de cuidadora do gênero feminino e da visão equivocada de escola como depósito de crianças desprovido de sentido pedagógico, na contemporaneidade a educação infantil assumiu uma importância social elevada e condizente com os objetivos propostos pela BNCC.
Ainda hoje está presente, mesmo entre professores, embora mais comum naqueles que atuam no ensino fundamental e médio; amplamente fortalecido no senso comum pela trajetória histórica da formação da mentalidade; uma falsa imagem de processos educacionais simplificados aplicados à infância.
A BNCC fixa como objetivos da aprendizagem e desenvolvimento na educação infantil: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se; mas o imaginário resume a complexidade pedagógica em torno destes objetivos como brincadeiras que ocupam o tempo das crianças.
A relação entre cuidar e educar é mais complexa, a educação infantil deve promover a aprendizagem e o desenvolvimento, implicando na interação entre práticas educativas para promover a integração das crianças com o mundo físico e social.
Onde a afetividade também deve estar presente, mas não isenta o professor do exercício de seu ofício guiando-se por uma prática eminentemente técnica, que carece de formação adequada, na qual se insere o estágio e o domínio do conhecimento teórico.
Neste contexto, a importância social da educação infantil se sobressai diante da tarefa do educador de servir como mediador no desenvolvimento de competências e habilidades.
O professor de creches e pré-escolas precisa valer-se da ludicidade para organizar ambientes e situações que possibilitem a exercitação da inteligência, construindo novos conhecimentos e valores a partir do capital cultural do educando.
O que novamente remete a formação docente, exigindo que o futuro professor coloque em prática a teoria, realize experimentações e reconstrua sua própria visão de mundo, valorizando a autoimagem de si e da profissão.

5. A DIALÉTICA ENTRE TEORIA E PRÁTICA.
A experimentação propiciada pelo estágio é uma oportunidade de intervenção real junto ao educando, onde a reflexão é fomentada.
Portanto, reconduz a discussão teórica, a qual, por sua vez, anteriormente já requeria do acadêmico o contato direto com a prática; compondo um movimento circular contínuo entre saber teórico e vivência da prática na educação infantil.
Ressalta Freitas e Montandon (2013, p.04) que “na constituição profissional do educador, toda pesquisa contribui para constantes melhorias e para a revisão da prática pedagógica, assim como possibilita a abertura de novos caminhos e entendimentos sobre o contexto de exercício da profissão”.
O estágio constitui uma pesquisa de campo, onde se articula o saber teórico, que é reconfigurado em novas informações e dados; ressignificando a teoria, que exige novamente empiricidade, remetendo a prática e circularidade unívoca entre saber teórico e exercitação lúdica.
O estágio é o fio condutor para articulação da identidade do professor, contribuindo não só para a formação docente, mas, também, para o inicio da adoção de uma postura contínua de pesquisa e reflexão sobre a vivência da prática.
A observação do educando possibilita a coleta de dados e a implementação de novas abordagens pedagógicas, advindas de discussões teóricas inerentes à academia e/ou que surgem da prática para teoria e da teoria para prática, construídas coletivamente com auxilio de educandos e educadores e fruto do debate entre pares nas universidades.  

6. CONCLUSÃO.
O estágio é essencial na formação do educador e no autoconhecimento sobre sua identidade, sua importância não se resume a complementação da teoria transformada em prática.
 Na educação infantil, não serve apenas a observação da criança de zero a seis anos ou ao entendimento do cuidar.
Mais do que profissionalizar, o estágio expande a teoria para o processo contínuo de pesquisa e reconstrução do conhecimento, agregando novos saberes que subsidiam competências e habilidades e, igualmente, estimulando uma postura criativa de práticas pedagógicas particularizadas.
A despeito de linhas pedagógicas de orientação comuns, cada educador, por meio do estágio, constrói sua própria forma de lidar com a infância, reconhecendo-se como professor que intervém na realidade da criança, atendendo a demanda do educando, adaptando a teoria a cada necessidade especifica.
Reescrevendo o planejamento e expectativas acadêmicas de resposta da criança aos estímulos, efetivando o processo educativo com a ampliação do conhecimento.
O estágio é também, simultaneamente, um importante elemento de construção da identidade do professor da educação infantil, introduzindo na essência da docência: um contínuo entrelaçamento entre teoria e prática e uma constante e perpétua reflexão e pesquisa, que rescreve saberes pedagógicos em um movimento dialético, adequando-se às necessidades do educando e do educador.

4. REFERÊNCIAS.
ALBUQUERQUE, S. S.; FELIPE, J.; CORSO, L. V. Para pensar a docência na educação infantil. Porto Alegre: Evangraf, 2019.
ANDRADE, Lucimary Bernabé Pedrosa. Prática Docente na Educação Infantil. São Paulo: UnicSul, s.d.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental.
Referencial curricular nacional para educação infantil. Brasília: MEC/SEF/COEDI, 1998. v. 1. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf>. Acesso em: 03 abr.2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC/SEB,2010. Disponível em: <https://ndi.ufsc.br/files/2012/02/Diretrizes-Curriculares-para-a-E-I.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2020.
BRASIL. Práticas Cotidianas na Educação Infantil – Bases para a reflexão sobre as orientações curriculares. Brasília: MEC, SEB, DICEI, Faculdade de Educação Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2020.
FREITAS, Adriana; MONTANDON, Ana Carolina de Lima Boaventura. As especificidades da docência na Educação Infantil: o estágio como possibilidade de refleão-ação. REDIVI - Revista de Divulgação Interdisciplinar do Núcleo das Licenciaturas. 2013-1. Itajaí: UNIVALI, 2013. Disponível em: <http://bit.ly/3bCQ5dD>. Acesso em: 03 abr. 2020.
RAMOS, Fábio Pestana. “A constituição afetiva da infância e da família no período colonial: o nascimento da profissão docente no Brasil” In: Profissão Docente e Cultura Escolar. São Paulo: Intersubjetiva, 2004, p.13-40.
RAMOS, Fábio Pestana; MORAIS, Marcos Vinicius de. Eles formaram o Brasil. São Paulo: Contexto, 2010.





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