FAPEN ON-LINE. Ano 2, Volume 9, Série 15/09, 2021.
RESUMO: O
presente estudo busca analisar a tradição e a contemporaneidade na obra
Histórias de Índio, do autor indígena Daniel Munduruku, buscando elementos que
mostrem a relação simbiótica entre a tradição da cultura indígena milenar com a
sociedade branca contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Análise
Textual, Histórias de Índio, Cultura Indígena.
ABSTRACT: This
study seeks to analyze the tradition and contemporaneity in the work Histórias
de Índio, by the indigenous author Daniel Munduruku, seeking elements that show
the symbiotic relationship between the tradition of millenary indigenous
culture and contemporary white society.
KEYWORDS: Textual
Analysis, Indigenous Stories, Indigenous Culture.
1. INTRODUÇÃO.
Os povos originários possuem culturas voltadas para a
transmissão oral de conhecimentos e elementos da sua cultura (lendas, histórias
e etc.).
Temos no Brasil, mais de 300 línguas, sendo a maior parte
delas indígenas e temos muitos povos que ainda não possuem escritores, ou seja,
muitas culturas indígenas ainda não possuem registros escritos sobre suas
histórias, cultura e religião.
Contudo, os autores indígenas vêm se organizado para
publicar suas obras e se aproximares dos centros culturais por meio da busca
pelo reconhecimento da sua produção cultural e acadêmica.
Podemos citar Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane
Potiguara, Kaká Werá Jecupé, Márcia Wayna Kambeba dentre outros que possuem
produção relevante para conhecimento e aprofundamento das temáticas indígenas
atuais e ancestrais.
Diante disso, se tornam cada vez mais relevantes as
pesquisas que voltam para o entendimento da realidade indígena brasileira e que
aproximam a sociedade e os povos originários.
Assim sendo, é interessante notar que alguns povos
indígenas, possuem representantes na sociedade que se destacam pelo vigor da
produção acadêmica, pelo ativismo social, pela defesa do meio ambiente ou pela
capacidade de alcance que a sua fala possui em meio às pessoas comuns.
2. DANIEL MUNDURUKU.
Daniel Munduruku, é escritor indígena sobre o qual o
presente trabalho se debruçará a partir da perspectiva literária, analisando
sua obra Histórias de Índio.
O autor se dedica à literatura infantil e juvenil
produzindo obras contextualizadas em aldeias munduruku com personagens que
percorrem diversos temas ao longo do enredo e trazem o leitor para o seu
universo, aproximando-o da sua cultura de forma suave e orgânica.
Pertencente à etnia Munduruku, pertencente ao tronco Tupi
Guarani, cuja maior parte se estabelece no Estado Brasileiro localizado no
norte do país, é na região do Pará que nasceu em 28 de fevereiro de 1954 Daniel
Mundurku na cidade de Belém, onde viveu toda a infância.
Apaixonado pelo conhecimento, construiu uma vida acadêmica
marcada por três graduações, filosofia, história e psicologia no Centro
Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), mestrado e doutorado em Educação
pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Linguística pela Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar).
Dedicou e dedica sua vida à escrita de livros, sendo autor
de diversos livros, ganhador de diversos prêmios Comendador da Ordem do Mérito
Cultural da Presidência da República (2013)
Menção honrosa do Prêmio Literatura para Crianças e Jovens
na Questão da Tolerância, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura, Menção de Livro Altamente Recomendável pela Fundação
Nacional para o Livro Infantil e Juvenil, Prêmio Jabuti de Literatura, Prêmio
da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Érico Vanucci Mendes, do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico é membro da Academia de
Letras de Lorena. É diretor-presidente do Instituto Uk'a - Casa dos Saberes
Ancestrais.
O autor se dedicou ao estudo da educação, da literatura e
da linguagem produzindo estudos publicados sobre esses temas, que sempre
voltados para o universo indígena, contribuem para difusão do conhecimento e
aproximação com a cultura da etnia Munduruku.
Diante disso, torna-se importante entender alguns conceitos
culturais importantes desse povo antes de abordar o conteúdo da sua obra
literária, que também estão presentes nas suas obras e cujo conhecimento
permite ao estudioso alcançar as referências que o autor traz em seus enredos.
Essa etnia indígena, assim como muitas outras, é nômade. O
nomadismo traz uma percepção única sobre os elementos e conquistas materiais
bem como sobre o trabalho, pois um povo nômade não tem vê necessidade em
trabalhar para acumular riquezas, tendo em vista que trabalha para garantir a
sobrevivência do grupo.
Nesse sentido, o senso coletivo é muito forte e os esforços
de um indivíduo do grupo sempre visam resultados que se estendam a todos;
salientamos aqui que o meio ambiente está inserido no grupo de forma autêntica
e relevante.
3. CULTURA ÍNDIGENA E VOCABULÁRIO.
Os indígenas compreendem a relevância do ecossistema para a
sua existência e para o equilíbrio da vida e tornam essa percepção realidade
através de ações voltadas para a caça consciente, o respeito com todos os
elementos naturais e a luta pela sua preservação.
Consequentemente, todos os povos indígenas possuem um ativismo
ambiental muito presente em suas ações e trajetórias de atuação no mundo.
São os maiores representantes da natureza se colocando em
frentes de resistência contra o desmatamento e o consumo descontrolado da
sociedade de consumo, sempre se equilibrando entre as necessidades de consumo e
as jornadas exaustivas de trabalho.
Também podemos citar como característica cultural do povo
Munduruku a percepção do tempo, tendo em vista que se dedicam ao momento
presente e usam o passado como fonte de aprendizado e conhecimento e o futuro
como uma possibilidade na linha da vida de todos os seres vivos.
Sempre que dialoga com pesquisadores em lives e
entrevistas, Daniel Munduruku deixa clara essa questão ao comparar as fases da
vida como um círculo no qual cada estação precisa ser vivida plenamente para
que a vida siga seu rumo de maneira saudável e plena .
Esses aspectos culturais, relatados aqui brevemente, se
revelam nas histórias que dão vida aos personagens do autor e se mostram
extremamente importantes para o entendimento aprofundado dos elementos
narrativos apresentados ao longo das obras.
Além disso, a religião também se mostra extremamente
importante e presente nas obras de Daniel Munduruku aparecendo por meio de
histórias dos antepassados que são contadas para ensinar, para demonstrar ou
mesmo para reunir a aldeia em porandubas (conversas, no idioma Munduruku).
Quanto ao vocabulário, sua obra conta com a estrutura da
língua portuguesa para se mostrar ao leitor com toques da língua munduruku
presentes na escolha do uso de palavras desse idioma para representar algumas
ideias ao longo das narrativas.
4. HISTÓRIAS DE ÍNDIO.
É com a publicação de Histórias de índio, Companhia das
Letrinhas, 1997, que Daniel Munduruku estreia como autor de literatura
indígena.
Essa obra se trata de um jovem que será iniciado nas
práticas de pajelança e em seu contato mais íntimo com a religião do seu povo,
aprende segredos e ensinamentos que o conectam com a sua camada mais profunda
do EU: os sonhos.
Seu mestre lhe ensina que não é possível se tornar um pajé
sem a prática do sonho, pois ele revela muitas coisas e conecta o humano com o
mundo espiritual.
Diante disso, o aprendiz se dedica em começar o aprendizado
que o mestre lhe solicita e, portanto, cumprindo os ritos de passagem para a
vida adulta cheia de responsabilidades com a aldeia e com as suas novas
tarefas.
O livro é divido em três partes, sendo a primeira sobre a
vida do Kaxi, conforme relatado brevemente acima, e a segunda falando sobre a
vida do próprio autor e a sua convivência com os elementos do universo
ocidental.
E, por fim, a terceira parte na qual são apresentadas
informações sobre a etnia Munduruku, trazendo conhecimentos gerais sobre esse
povo e suas principais características.
Diante disso, o leitor atento fica se questionando se a
obra se trata, ao menos em parte, de uma autoficção, na qual o autor se coloca
como um personagem com traços biográficos e analíticos em relação aos fatos
vividos em uma cadência que o faz reviver situações repaginadas pela narrativa,
que o coloca em posição analítica sobre as próprias memórias e finaliza com
dados provenientes de uma pesquisa forma sobre sua etnia.
A partir dessa perspectiva, na qual temos uma única obra
intitulada Histórias de Índio, dividas em três partes sendo a primeira e vida
na aldeia e a segunda a vida na sociedade do homem branco e a terceira
mostrando a face do pesquisados de racionaliza e estuda seu próprio povo, suas
origens, mas todas essas personas se estruturam a partir de apenas um indígena
que permeia toda a história: o narrador.
Por esse motivo, associa-se o fato de o narrador estar
presente nas duas histórias e o termo Índio, presente no título, estar na sua
forma singular, pois mesmo quando a pesquisa se apresenta no final do livro,
com dados relevantes sobre os Munduruku, é possível perceber um fio narrativo
que conduz o leitor pelo conhecimento.
Outro aspecto interessante é a resistência presente na obra
que, sensível ao viés literário e artístico do uso da palavra, usa a língua
portuguesa com pequenos fragmentos, fraturas em sua estrutura, representadas
pelos vocábulos munduruku que marcam presença na língua do opressor dos povos
indígenas.
Há muito que o opressor dos povos indígenas deixou de ser
os portugueses, que não cedeu seu lugar sem resistir, ao homem branco
brasileiro. Diante disso, ainda temos um opressor que se expressa em língua
portuguesa e que precisa ser conscientizado de que o indígena existe e vai
continuar presente e difundindo sua cultura e seus saberes ancestrais.
Toda a estrutura da obra se mostra como o percurso do
próprio autor, que inicia sua jornada na vida como um indígena nascido e criado
na aldeia Munduruku para, na vida adulta, se relacionar com o homem branco e
sua sociedade para depois se tornar um pesquisador com uma carreira acadêmica
consolidada, que é utilizada como instrumento de combate e resistência no que
diz respeito às causas indígenas e às necessidades do seu povo.
Assim sendo, tanto na ficção como na vida real, temos a
tradição convivendo com o contemporâneo, pois a vinda do indígena para a
sociedade branca em sua estrutura acadêmica transporta esses elementos para uma
convivência intercultural e não estacionária, na medida em que se ressignifica
a partir do contato.
De acordo com BAUMAN:
Resumidamente, a
“individualização” consiste em transformar a “identidade humana de um dado” em
uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa
e das consequências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Em
outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure
(independente de a autonomia da facto também ter sido estabelecida). (BAUMAN,
2021, p.44)
Vários elementos contribuem para que a tradição e a
contemporaneidade sejam vistos lado a lado na relação entre autor e autoria,
tendo em vista que a sua afirmação enquanto autor indígena se dá no instrumento
de difusão de conhecimento do homem branco: o livro, em língua portuguesa;
produzido em três etapas que mostram todas as faces do autor na sua autoria.
Os “efeitos colaterais” da identidade individualizada do
indígena acadêmico se dão na medida em que os saberes originalmente difundidos
na linguagem oral munduruku se manifestam na escrita poética de Daniel, pelas
aventuras do menino Kaxi, ou pelo relato da sua convivência com a cultura do
homem branco, que muitas vezes questiona sua identidade pelo percurso acadêmico
vivido de forma obrigatoriamente distanciada da sua aldeia.
Esse distanciamento é questionado e visto como uma perda
gradativa de identidade de forma injusta, tendo em vista que o país não
universaliza o conhecimento para a sua população indígena ao não fornecer
instituições indígenas de estudo com a oferta de cursos superiores e/ou livros
nas línguas indígenas para que seus autores sejam lidos pelos seus na sua
língua materna.
5. CONCLUSÃO.
Indivíduos que precisam se afirmar, devem buscar sua
individualidade com os instrumentos que possuem e utilizando as ferramentas que
conseguem angariar.
Infelizmente, os indígenas brasileiros conseguem afirmar
sua identidade a firmar sua individualidade com pouquíssimos instrumentos que
os colocam em situações relevantes de diálogo com menos frequência que o
necessário para a garantida do seu direito de existir.
Por conta disso, a autonomia que os grupos indígenas
possuem para preservar sua identidade, nem sempre diz respeito aos esforços,
mas sim às condições para que os esforços sejam feitos, pois muitos pagam com a
própria vida pela autoafirmação enquanto indígenas brasileiros, povos
originários que se organizam socialmente e ocupam os espaços acadêmicos desenvolvendo
pesquisa.
O livro Histórias de Índio é uma narrativa que traz
diversos elementos para todas as idades conhecerem um pouco mais sobre os povos
indígenas e muito a respeito da etnia Munduruku.
Sua construção nos mostra que a tradição e o contemporâneo
podem coexistir sem se ferir, embora o contato entre ambos tragam modificações
impossíveis de serem barradas ou impedidas porque a falta delas significa a
falta de movimento inerente à vida.
6. REFERÊNCIAS.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Modernidade
Líquida / Zygmunt Bauman. tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar,
2021.
CAMPOS, Hélio Silva. Cosmovisões: antigas e
contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2015.
MUNDURUKU, Daniel. Histórias de Índio. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2012.
BRASIL. PIB Socioambiental - Quadro Geral dos Povos
Indígenas. UNIRIO - Aula inaugural da Escola de Letras recebe escritor
Daniel Munduruku. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos>
Acesso
em: 10/07/2021 às 16h20
WERÁ, Kaká. O poder do sonho: um livro sobre a arte de sonhar. Estados Unidos da América: Tumiak Edições, 2021.